NÃO VOU MAIS LAVAR OS PRATOS
Não vou mais lavar os pratos
Nem vou limpar a poeira dos móveis.
Sinto muito. Comecei a ler.
Abri outro dia um livro e uma semana depois decidi.
Não levo mais o lixo para a lixeira.
Nem arrumo a bagunça das folhas que caem no quintal.
Sinto muito.
Depois de ler percebi a estética dos pratos, a estética dos traços, a ética, a estática.
Olho minhas mãos quando mudam a página dos livros,
mãos bem mais macias que antes e sinto que posso começar a ser a todo instante.
Sinto. Qualquer coisa.
Não vou mais lavar. Nem levar.
Seus tapetes para lavar a seco.
Tenho os olhos rasos d’água.
Sinto muito.
Agora que comecei a ler quero entender.
O porquê, por quê? E o porquê.
Existem coisas. Eu li, e li, e li. Eu até sorri.
E deixei o feijão queimar...
Olha que o feijão sempre demora a ficar pronto.
Considere que os tempos agora são outros...
Ah, esqueci de dizer. Não vou mais.
Resolvi ficar um tempo comigo.
Resolvi ler sobre o que se passa conosco.
Você nem me espere. Você nem me chame. Não vou.
De tudo o que jamais li, de tudo o que jamais entendi, você foi o que passou.
Passou do limite, passou da medida, passou do alfabeto. Desalfabetizou.
Não vou mais lavar as coisas e encobrir a verdadeira sujeira.
Nem limpar a poeira e espalhar o pó daqui para lá e de lá para cá.
Desinfetarei as minhas mãos e não tocarei suas partes móveis.
Não tocarei no álcool.
Depois de tantos anos alfabetizada, aprendi a ler.
Depois de tanto tempo juntos, aprendi a separar
Meu tênis do seu sapato,
Minha gaveta das suas gravatas
Meu perfume do seu cheiro
Minha tela da sua moldura.
Sendo assim, não lavo mais nada, e olho a sujeira
No fundo do copo.
Sempre chega o momento
De sacudir, de investir, de traduzir.
Não lavo mais pratos.
Li a assinatura da minha lei áurea escrita em negro maiúsculo,
Em letras tamanho 18, espaço duplo.
Aboli.
Não lavo mais os pratos.
Quero travessas de prata,
Cozinhas de luxo
E jóias de ouro. Legítimas.
Está decretada a lei áurea.
Autora: Cristiane Sobral
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